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| Entrevista Claire Angelini

Raquel Imanishi (e Jean-Claude Bernadet)


Claire Angelini tem um pensamento dialógico. Na oficina que ministrou no seminário “A mulher e a câmara” no último fórum.doc BH, a minuciosa apresentação de seus filmes e projetos não raro se confundia com reflexões nascidas em conversas ou discussões ouvidas no próprio fórum e o debate de outros trabalhos: filmes vistos na véspera, quando não trazidos na bagagem ou na memória; composições musicais ou conceitos filosóficos; livros de história e filosofia; desenhos, imagens, capas de livros e mesmo uma colagem encontrada num painel lateral do cine Humberto Mauro. Essa alteridade como que constitutiva, feita do embate contínuo com a tradição europeia e a produção artística, também pode ser reencontrada em seus filmes, no interior mesmo de um único personagem. Helmut, a figura central de Et tu es dehors (2012), por exemplo, ao mesmo tempo que reúne enquanto instância fictícia os fragmentos de sua própria história, condensa, como dispositivo fílmico, parte da memória literária do século passado.

Para dar ideia desse pensamento e entrar no espírito dessa obra – só exibida no Brasil na mostra mineira e numa sessão especial da Cinemateca Brasileira, em agosto passado – selecionamos quatro entre as muitas citações referidas por Claire no seminário, tomando desse modo como ponto de partida para nossa conversa outras, por ela, já iniciadas.  


| Citações

(1) “A ideia de uma linguagem cinematográfica, da existência de uma gramática a ser respeitada, se liga à manutenção das supostas leis do cinema. Essas leis definem o que se pode fazer e o que não se pode fazer, mas sobretudo o que não se pode fazer. Elas são explicadas por uma parte da crítica, dos especialistas e semi-especialistas de modo inalteravelmente repressivo (é proibido...). As noções de linguagem e leis do cinema servem de critério a muitos deles para considerar bons os filmes ruins e ruins os filmes bons. Felizmente, não existe linguagem nem leis do cinema: tudo é permitido”. Johan van der Keuken, Aventures d’un regard. Paris: Ed. Cahiers du Cinéma, 1998.


(2) “A história considerada como um amontoado de fatos, um gabinete de curiosidades, uma vitrine de datas, uma acumulação de reis, uma coleção de batalhas ou um cemitério – não queríamos nada disso, que não fazia senão nos desviar da vida concreta (...) Não queríamos a história como um texto acabado, queríamos ver como o texto se elabora, determinar a história a partir de suas próprias fontes reconstituídas; queríamos cozinhar e não apenas comer.

A história – é assim que a definimos em comum – é nosso ambiente político. Como ela nasce e desaparece, como podemos muda-la, pois ela é modificável. Nós devíamos assim partir das coisas, reexaminar os acontecimentos, descobrir seu motor e proceder a verdadeiras micro-análises sobre um terreno circunscrito.” Niklaus Meienberg, L’exécution du traître à la patrie Ernst S (cf. ref. com Claire, 1977).


(3) “A memória é utilizada com frequência como sinônimo de história e possui uma tendência singular de absorvê-la tornando-se, ela mesma, uma espécie de categoria meta-histórica. Assim, ela apreende o passado em uma rede com malhas mais largas do que as da disciplina tradicionalmente denominada história, depositando nela uma dose bem maior de subjetividade, de ‘vivido’. (...) Ela invade hoje o espaço público das sociedades ocidentais (...) se transforma em ‘obsessão comemorativa’ e a valorização, ou mesmo sacralização, dos ‘lugares de memória’ engendra uma verdadeira ‘topolatria’. (...) Extraída da experiência vivida, a memória é eminentemente subjetiva. Ela permanece ancorada aos fatos a que assistimos, dos quais fomos testemunha, ou atores, e às impressões que foram gravadas em nosso espírito. (...) Por sua característica subjetiva, a memória não é nunca fixa (petrificada), mas se assemelha antes a um canteiro aberto, em permanente transformação.” Enzo Traverso, Le passé, modes d’emploi – histoire, mémoire, politique. Paris : La Fabrique éditions, 2005.


(4) No caso das sociedades modernas essa memória é edificada pelos lugares de memória que são o museu, o memorial e o monumento. Entretanto, a permanência prometida por um monumento em pedra é sempre construída sobre a areia. Alguns monumentos são alegremente destruídos durante as reviravoltas sociais e outros preservam a memória sob a forma a mais ossificada, seja como mito seja como clichê. Outros ainda permanecem simplesmente figuras do esquecimento, vendo sua significação e seus objetivos erodidos pela passagem do tempo. Como escreveu Musil: entre outras particularidades de que podem se orgulhar os monumentos, a mais impressionante é, paradoxalmente, que não os notamos. Não há nada no mundo de mais invisível.” Andreas Huyssen,  Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of Memory, Stanford UP, 2003. (cf. referência com Claire)


| Entrevista


Negativo

As “supostas leis do cinema”, referidas por van Keuken, não raro se confundem com as leis (supostamente incontestáveis) do mercado, leis que ao menos no Brasil definem também o que se pode financiar e, sobretudo, o que não se pode financiar. Dado que você definiu sua própria posição como a de uma “artista independente, com um pé no cinema e outro nas artes plásticas”, gostaríamos que você contasse um pouco da tua formação e nos dissesse em que medida ela contribuiu (ou concorreu) para distância tomada por você frente à televisão e ao mercado e para valorização da autonomia evocada por essa citação. Ainda em torno disso: essa como que “normatização” da produção cinematográfica, fundada sobre um suposto conhecimento do gosto do público, implica muitas vezes uma redução das experimentações seja no que diz respeito aos temas e alcance dos projetos, seja no que concerne às possibilidades e ambições formais dos filmes. Como você avalia, nesse sentido, o papel dos festivais e outras instâncias institucionais e mediáticas no contexto europeu e como são (ou foram) tomadas as decisões em relação ao formato e modo de produção no caso dos teus filmes?


Claire

De fato, trabalho como uma artista independente, tanto no que diz respeito aos temas que abordo, quanto à execução dos projetos: ainda que alguns de meus filmes tenham obtido apoio e financiamento, o que predomina são as produções independentes, e a ausência de relação com o mercado me força, ao mesmo tempo, a ser minha própria patrocinadora. Essa situação se explica em parte por meu percurso: me formei na Escola de Belas Artes de Paris e trabalho, além de cinema, com desenho, fotografia, instalação, performance e livros de arte. Meus filmes são concebidos, a princípio, para uma forma específica de recepção: uma projeção de duração predefinida, vista do começo ao fim por um público reunido em uma sala mais ou menos confortável que deve viver, durante o tempo da projeção, uma experiência intensa. Essa forma, pela qual tenho grande apreço – pois ela é a maneira pela qual ligo meu trabalho ao Outro e a todos os Outros possíveis – não é, no entanto, imutável – e, aliás, ela nunca o foi desde 1895, longe disso. Como a situação de projeção em uma sala de cinema se torna a cada dia mais aleatória, busquei também lugares [de projeção] distantes desse cânon. Esse outro cinema que realizo tem, na prática, que inventar seus lugares e seu público, e por isso passei a apresentar meus filmes em centros de arte, universidades, salas de concerto, apartamentos etc. Com a condição, claro, de que essas migrações não alterem aquilo que está em jogo nos filmes. Penso, como contra-exemplo, nas mudanças de recepção de um filme político como Zum Vergleich (2007) [A título de comparação], de Harun Farocki, primeiro exibido em uma sala de cinema de arte, depois transformado em Vergleich über ein Drittes [Comparação sobre um terceiro] no “cubo branco” da Kunsthaus de Bregenz: a diferente locação transformava de fato o conteúdo, o sentido mais íntimo do filme.

A entrada tardia numa escola de cinema foi motivada pelo amadurecimento do meu trabalho artístico e pela importância que o cinema nele adquiria. Mas o que efetivamente o impôs aos poucos como um meio pertinente foi a importância dada aos questionamentos ligados à história. Para além disso, a massificação e a diversificação das câmeras de pequeno formato no fim dos anos 90 e o uso esmagador do vídeo na arte contemporânea, tiveram seu papel nessa evolução pessoal, viabilizando-a tecnicamente.

O que concluo das minhas passagens por essas instituições e por uma terceira formação, paralela, em história da arte? Assim como a Escola de Belas Artes de Paris, organizada segundo o modelo antigo do ateliê (um mestre e seus alunos), preconizava a autonomia radical do aprendiz-artista, em um movimento de supervalorização de cada gesto criador, a escola de cinema em Munique remetia a regras, submetendo o estudante a um aprendizado normativo.

Nas Belas Artes, fui deixada por minha conta e risco durante 4 anos, o que me levou à interrogação constante sobre a pertinência do trabalho feito, seu valor e justeza sensível. Inteiramente distinto foi o curso na Hochschule für Fernsehen und Film de Munique. Ainda que se tratasse, certamente, de fazer nossos próprios filmes ou de ajudar outros a fazê-los, era preciso sobretudo atentar às regras e recomendações aprendidas quanto à maneira de definir um tema e de trabalhá-lo, escrever um roteiro, decupá-lo, filmá-lo, etc. A escola, de resto, não escondia em absoluto a finalidade pela qual tinha reconhecida sua excelência: ser o entreposto dos usos mais normativos da televisão, formar seus verdadeiros agentes, oferecendo assim, a quem buscava adquiri-las, as bases dessa linguagem audiovisual que garante, como um “abre-te, sésamo”, uma boa integração ao mundo audiovisual comercial. É, aliás, essa mesma preocupação, agora em relação ao mercado internacional, que levou recentemente a Fémis (Paris) a criar uma seção inteiramente dedicada às “séries televisivas”. Parece-me, de fato, ser preciso interpretar essa criação recente (2013) para além do que ela tem de sintomático: ela revela, no sentido químico do termo, o que o cinema de autor se tornou no século XXI: uma curiosidade para os happy few dos museus e múltiplos festivais.

De fato, a situação é hoje paradoxal. Como as tensões econômicas que vivemos no cotidiano, ela me parece ao mesmo tempo explosiva e travada: por um lado, assistimos a uma multiplicação de festivais e, por outro, esses se ocupam sobretudo de promover um número restrito de filmes, recusando a maioria dos realizados a cada ano em função de sua política de seleção. Entre esses filmes numerosos se encontram decerto produtos “fáceis” e outros que antigamente chamaríamos de “amadores”, realizados graças às facilidades técnicas acessíveis a todos, mas, igualmente, uma quantidade não desprezível de filmes de autor – filmes exigentes, considerados com frequência muito “difíceis” para o público visado por essas instituições. Há portanto uma crise de seleção, dividida entre a oferta quantitativamente ilimitada e incontrolável e a padronização de uma fórmula “autoral” média, socialmente aceitável – um novo “cinema de qualidade”, ungido pelas instâncias estatais e comerciais-culturais (que se apóiam e legitimam mutuamente).

A pletora de festivais esconde, antes de mais nada, a realidade de um mercado nos diversos sentidos da palavra que funciona por meio de trocas e de interesses bem assentes no seio de um sistema impositivo e extremamente hierarquizado. Festivais de nível A, B, C, D, E etc., programadores que vão a um ou outro fazer suas compras, de acordo com sua posição, seu nível e financiamento, e, por outro lado, a obrigação de todo festival que queira “manter seu nível” ou asceder a um nível superior, de organizar, paralelamente a suas projeções, um “mercado do filme”. Mercado que ofereça, além da seleção dos filmes exibidos, a possibilidade para os compradores – essencialmente televisões e distribuidores – de assistir a DVDs. Assim, distingue-se na estrutura mesma dos festivais uma vitrine, “assinada” pelo diretor, cuja personalidade tende a se assemelhar à do curator no mundo das exposições – menos alguém a serviço dos artistas e das obras do que aquele que as “põe em cena” – e, de outro lado, um souk indistinto, onde as obras são vistas parcialmente e em condições precárias. Evidentemente, exige-se dos cineastas sondados ou simplesmente candidatos, seja à seleção oficial, seja a estarem presentes no mercado, que paguem sua inscrição. Esse é um dos meios de discriminação suplementar com relação aos independentes, pois uma produção comercial paga sem problema essa “taxa de entrada” (que remonta no mínimo a algumas centenas de euros), enquanto que um cineasta independente, condenado a se inscrever em uma centena de festivais, o mais das vezes com prejuízo, não tem os meios para tanto. Esse sistema marginaliza, desse modo, uma parte importante da produção cinematográfica efetiva que poderíamos qualificar de “cinema independente”.

Este é um dos paradoxos deste mundo que não cessa de celebrar a imagem em movimento: talvez nunca tenha sido tão fácil fazer filmes, mas essa democratização radical dos meios de produção não foi acompanhada pela construção de circuitos de visibilidade para todos os “autores” que fazem um cinema que não entra nos quadros do mercado. Ao contrário: a contração do mercado se acirra de tal modo que mesmo autores reconhecidos, cujos filmes já pertencem à história do cinema, penam como nunca para fazer seus filmes, ou recorrem a “balcões” de subvenção antes reservados aos cineastas marginais: foi assim com Patrizio Guzman, que quase não conseguiu financiar Nostalgie de la lumière, um filme sobre a ditadura chilena; com Alan Sekula e Noel Burch, cujo filme The Forgotten Space permaneceu restrito ao meio artístico; e com o último filme de Jean-Marie Straub, Un conte de Michel de Montaigne, recusado em 2013 pela Quinzena dos Realizadores de Cannes. E o peso que as exigências industriais e culturais da multimídia joga sobre o cinema – videogames, consoles, web-docs, etc – leva vários profissionais a considera-lo hoje uma prática obsoleta, atitude que sem dúvida contribui para a resistência atual das televisões e dos festivais contra tudo o que se afasta, por pouco que seja, da linguagem convencional fixada pela norma coletiva dos que decidem.

A única “alternativa” posta atualmente ao conjunto difuso, praticamente indefinido, de todos esses filmes “proibidos” de serem difundidos pelos canais institucionalizados, é a rede, ou seja, uma espécie de espaço abstrato, onde certamente se pode contar o número de “cliques”, supondo-se que representam espectadores, mas que subtrai ao filme qualquer apreensão coletiva, qualquer confronto entre o autor e seus espectadores.

Para voltar à citação de van der Keuken, pode-se dizer que a história do cinema foi de fato atravessada desde cedo por debates teóricos sobre a maneira de se fazer filmes, as implicações políticas das escolhas estéticas, tanto de filmagem quanto montagem, e o engajamento ético implícito na atitude dos realizadores em relação àquilo que suas obras configuram quanto ao real. Inscrita em um contexto dado, uma escolha estética carrega o peso do significante; longe de ser neutro, o desenvolvimento de uma ou outra forma é marcado por um conteúdo eminentemente político e social.

Ora, as regras que os intermediários e as instituições ditam no campo cinematográfico, partindo de uma relação com um público visto como um conjunto potencial de consumidores, definem não só o que não deve ser financiado, mas também o que não deve ser visto. Essa censura, que não se apresenta como tal, de fato determinou o desaparecimento ou invisibilidade de um certo cinema. Isso em nome de um público, cujos gostos e aspirações ela diz conhecer e cuja cegueira ela pouco a pouco organiza. Fundando-se sobre um pretenso conhecimento do gosto dos espectadores, trata-se na realidade de configurar o mundo em função do jogo político do momento, ou, dizendo mais cruamente: de impor uma maneira de ver e de pensar.

O que é certo é que estamos assistindo a uma gigantesca reconfiguração do campo do cinema, concomitante de resto com o vertiginoso processo de liquidação do suporte filme em favor do formato digital, processo que tornou obsoleta num tempo recorde toda a cadeia analógica – tanto química quanto mecânica, substituindo-a completamente por uma cadeia informática, imposta pelas indústrias e pelas instituições estatais e supra-estatais do cinema. Nessa nova paisagem, que vai de par com o triunfo político do mercado globalizado, a visibilidade de um cinema autônomo, realizado fora dos cânones prescritos pela televisão, torna-se um desafio de escala planetária. Nesse sentido, esse fenômeno de normalização do campo cinematográfico, exacerbado em alguns países ditos emergentes como o Brasil e a China, é apenas a expressão de um processo que toca a todos, tendo o desaparecimento de uma alternativa política assinalado há muito a morte das cinematografias ditas nacionais nos países do Leste e em outros lugares, ou sua redução a um mercado doméstico.

Ora, se é particularmente difícil pensar uma produção cinematográfica independente nesse contexto, é paradoxalmente esse efeito de violenta marginalização que a torna mais do que nunca necessária, no sentido de que a reafirmação de um cinema de autor, nas pegadas de um Straub, de um [Boris] Lehman, de um van der Keuken, de um [Marcel] Hanoun etc., constitui potencialmente – pela via das implicações estéticas dos filmes – a promessa de uma alternativa política à onipotência do mercado e das mercadorias.

Quanto a mim, ao reivindicar esse tipo de cinema como a ferramenta sensível mais adequada à minha pesquisa, eu me prendo a lugares, paisagens mentais e memoriais e territórios coletivos através dos quais aprofundo meu trabalho sobre a história: uma maneira de inscrever politicamente minha relação com o mundo de que faço parte hic et nunc. Se a questão da escrita (ou do dispositivo) está no cerne de minha prática, é justamente porque eu busco, a cada proposição fílmica, deslocar sensivelmente o foco sobre o real, a fim de abrir o espaço da representação a outros conteúdos.

É, portanto, longe da norma posta pelos mediadores institucionais que meus filmes se desenvolvem, cada um deles seguindo sua lógica própria. No entanto, na medida em que cada projeto carrega também a marca concreta de seu modo de fabricação, cada um revela individualmente, a começar pelo seu ser físico (suporte, formato, difusão), as condições em que foi feito. No cinema que faço, as realidades da produção e, em particular, do financiamento dos filmes, são, antes de mais nada, decisões tomadas em função das necessidades do tema a ser tratado. Mas são também a expressão dessa negociação entre o real (o que posso, o que é realista querer) e as exigências de cada projeto. Retomando a gênese econômica de meus três longas-metragens, percebo sobretudo as diferenças radicais que caracterizam suas realizações. Formatos, suportes, modos de produção e de difusão variaram de um projeto a outro. Além disso, essas mudanças foram também meu modo de reagir a um contexto e a um ambiente cada vez mais restritivos. Refletir sobre o desenvolvimento de cada projeto permite, ao mesmo tempo, medir uma evolução no tempo e fazer a micro-história da relação entre instituições que se ocupam do cinema na França (entre 2004 e 2013) e autores independentes como eu.

No caso de Le Retour au pays de l’enfance [O retorno ao país da infância], o projeto conseguiu um auxílio para elaboração de roteiro que, como um primeiro reconhecimento institucional, no caso, do CNC [Centre Nacional du Cinema et de l’Image Animée], permitiu encontrar um produtor – a quem o apoio interessava igualmente por implicar um segundo financiamento, o “apoio para desenvolvimento” (cf. modalidades de financiamento correspondentes no Brasil). Esse foi solicitado pelo produtor, que o obteve em seu próprio nome – o que lhe permitia dispor a seu modo dos recursos, dado que a instituição trata com os intermediários e não diretamente com os autores – e após um acordo obrigatório com uma cadeia de televisão, que se comprometia a exibir o filme com uma duração de 52 minutos, o CNC concedeu um prolongamento suplementar para a filmagem. O filme foi, portanto, totalmente financiado por uma instituição pública, junto à qual meu produtor solicitou o orçamento integral do filme, só investindo em meu projeto na medida em que podia esperar outros possíveis apoios, na sequência do primeiro que recebi. Não sendo a duração do filme, de qualquer modo, passível nem objeto de discussão.

É evidente que, em um esquema desse tipo, o autor tem pouca margem de manobra, já se dando por satisfeito com o financiamento obtido. O produtor, por seu turno, não assume qualquer risco, tampouco a instituição, que estabelece suas condições: a exibição obrigatória na TV assegura que ela recuperará o investimento inicial no seio do sistema que ela, assim, alimenta.

A autonomização do projeto e a realização de um filme que seja mesmo o idealizado pelo autor deu-se, no meu caso, ao preço de um ríspida negociação. Conseguir conservar o corte inicial e ser responsável pela montagem; entregar a versão de 52’ obrigatória, mas também trabalhar em uma versão pessoal com uma duração adequada à respiração interna do filme, tudo isso foi negociado com dificuldade – e se o autor se aferra a isso, termina – como eu – por romper com o produtor.

É diferente o caso de La Guerre est proche [A guerra é próxima]. O projeto não teve início com a redação de um roteiro, mas numa situação de urgência ligada à história de um lugar singular, o campo de Rivesaltes, que seria em breve destruído para dar lugar a um memorial. Ele nasceu, assim, da relação direta e concreta com um lugar específico, cuja topografia tratava-se de trabalhar de perto. Face a situação delicada desse lugar peculiar – um campo de internação francês para “estrangeiros indesejáveis”, que funcionou de 1938 a 2007 –, várias escolhas se impuseram, determinando tanto a forma quanto a economia do filme. De fato, levada pela urgência temporal e querendo conservar a qualquer preço minha independência, tendo em vista um território onde se cruzavam questões de memória – que são sempre questões políticas –, optei por realizar o filme num regime de total autoprodução e com autonomia técnica, assumindo a fotografia, o som e a montagem e lançando mão da ajuda de amigos que pudessem me dar abrigo ou assistência gratuita.

Et tu es dehors [E você está de fora] participa dos dois modos de produção e de execução precedentes. Eu pretendia realizar esse filme – para o qual tinha imaginado uma forma e um suporte precisos – com as melhores condições técnicas (com diretor de fotografia e filmagem em HD), pois considerava tais exigências parte intrínseca do projeto. Desenrolando vários fios narrativos – a partir da história de eliminação de deficientes físicos e mentais até a evolução da psiquiatria hoje – o filme foi pensado como um “ensaio filmado” sobre a questão da norma. Ou seja, tanto por seu tema quanto por sua forma, o filme não tinha nada que pudesse satisfazer ou seduzir um produtor que tem em mente um produto vendável para uma cadeia de televisão. Antes pelo contrário. Como então encontrar financiamento para um filme “invendável” no mercado audiovisual e cuja forma e conteúdo, capazes de interessar ao meio artístico contemporâneo, não era financiável por um centro de artes, dado seu alcance deliberadamente político e documental?

Uma ajuda da Scam [Sociedade civil de autores multimídia] contemplou de início o roteiro, ao passo que um apoio regional, nos lugares onde eu previa filmar, trouxe-me o resto do financiamento necessário, graças ao dinamismo e comprometimento de uma associação local. Esses recursos, e um controle ferrenho do orçamento, asseguraram o financiamento desse longa, onde nenhum dos que nele trabalharam foi realmente pago por seu trabalho. Resultado de um belo esforço coletivo, o filme teve uma excelente repercussão junto ao público que pôde vê-lo, mas foi recusado pela maioria dos festivais.

Essas dificuldades e entraves dispararam, ao mesmo tempo, o desejo de encontrar outros circuitos de difusão realmente independentes. Se no primeiro filme eu ainda me pautava nas projeções por exigências de qualidade técnica, agora ponho ênfase na possibilidade de mostrar o filme e de buscar em meu entorno artistas confrontados com os mesmos problemas a fim de inventar soluções conjuntas.


Negativo

A dimensão política do cinema e da história – a ideia de que queremos “cozinhar e não apenas comer”, como diz (bela) e simplesmente Niklaus Meienberg – aparece de muitas formas no teu trabalho e na tuas falas. No início do seminário, por exemplo, você dizia que “frente ao controle generalizado das imagens, das situações, do espaço e também à espetacularização do mundo, trata-se de afirmar de saída o cinema como uma ferramenta da história e como um instrumento político”. Em vista dos temas dos teus filmes e projetos, poderíamos dizer que essa percepção nasceu de uma experiência particular, mas também coletiva, das contradições presentes e passadas do território europeu? Em outros termos, será que você poderia situar (minimamente) a centralidade do conceito de território no curso da tua trajetória?


Claire

A dimensão política do meu interesse pela história é, em primeiro lugar, expressão de um engajamento feminista: a consciência de que sob a oficialidade dos pressupostos bem estabelecidos e dos fatos marcados pelo selo do poder – o selo das batalhas vencidas, dos territórios conquistados e da acumulação de reis, evocada por Niklaus Meienberg – existe uma outra história, aquela dos perdedores, dos obscuros, a daqueles que nunca fizeram história mas sentiram na pele seus golpes, a exemplo do pequeno povo americano cujos sofrimentos e lutas humildes e grandiosas durante a Grande Depressão nos são contados no filme Let Us Now Praise Famous Men [Louvemos agora os grandes homens], de Walter Evans e James Agee (1941). Uma via da qual Foucault foi o pensador ao operar como detonador de arquivos.  Em sua introdução à Vida de homens infames, ele diz ter querido que esses personagens fossem, eles mesmos, obscuros, “que não fossem dotadas de nenhuma dessas grandeza estabelecidas e reconhecidas – as do nascimento, da fortuna, da santidade, do heroísmo ou do gênio; que pertencessem a esses milhares de existências que estão destinadas a passar sem deixar rastro”.

Para mim, a história é assim, a princípio, aquilo que ainda não foi formulado; o que permaneceu morto ou enterrado, o que ainda não teve direito à palavra mas, ao fim e ao cabo, parece ainda agir no nosso espaço contemporâneo como uma espécie de conteúdo latente.  Pois “sabemos que, por trás da nuvem opaca da nossa ignorância e da incerteza de resultados detalhados, as forças históricas que moldaram o século continuam a operar”.

É evidente a dimensão política de um tal deslocamento: para mim, ela se afirma a princípio como uma tomada de posição militante contra a história oficial, a qual cabe restituir a complexidade. Não é acaso a história, antes de tudo, a história de todos os encobrimentos? E o trabalho do artista não é o de suspender o véu da hagiografia para que possam aflorar outras narrativas significantes?

Nosso território europeu – esse terreno que laboro – me parece particularmente saturado de narrativas e rastros: cada centímetro quadrado de território oferece uma potencialidade narrativa para isso, que tem tanto a ver com a arqueologia quanto com a geografia.  Cumprindo escavar os estratos temporais, dos quais esses terrenos portam a marca, e ver como eles interrogam o presente.

É justamente disso que se trata em La Guerre est proche: a fundação de uma narrativa que, partindo da história, também concerne à atualidade – o passado fazendo eco aos desconfortos do presente – e à política de um país como a França em relação aos estrangeiros indesejáveis.

A vasta planície batida pelos ventos de Rivesaltes – o terreno baldio e, ao mesmo tempo, conjunto de ruínas de La guerre est proche – é efetivamente um livro aberto, por pouco que nos detenhamos a decifrar seus rastros. Foi de início para conhecer esse sítio que faz parte da nossa história – morta e, portanto, invisível – que empreendi uma primeira viagem de reconhecimento a esses lugares, sem definir de saída o meio de que lançaria mão para tanto, se a fotografia, a narrativa ou um filme. Foi ao me debruçar sobre os arquivos escritos e audiovisuais que documentam suas diferentes épocas que descobri, pouco a pouco, o período excepcional de funcionamento de um lugar cuja arquitetura arruinada testemunha a organização concentracionária francesa – um caso único, visto que os campos de Gurs e Vernet [no sudoeste da França], construídos em madeira, hoje desapareceram.

Ao dar início ao filme, me impressionaram particularmente duas coisas, que passariam a orientar meu trabalho: de um lado, a enormidade do projeto de confinamento estatal, estendido no tempo e no espaço; e, por outro, a espantosa variedade de grupos nacionais, confessionais ou políticos que ali se sucederiam. Para além disso, havia também uma conjunção perturbadora com o presente, na medida em que o momento de realização do filme coincidiu com um endurecimento da política francesa. A atualidade social se via às voltas com as quotas de imigação, a política dos centros de retenção, a multiplicação – ilegal, do ponto de vista dos direitos humanos – das batidas e detenções policiais de estrangeiros e, por fim, as polêmicas em torno do direito de cidadania e perda da nacionalidade francesa. Por estar pessoalmente ligada a coletivos de apoio a “solicitantes de asilo”, sei da extrema precariedade e dificuldades dessas populações.

La guerre est proche é assim fruto da conjunção entre um relato histórico deslocado do ponto de vista do lugar, por meio da problematização dos rastros, e sua tenaz atualização em uma conjuntura contemporânea desfavorável aos estrangeiros. Se “a guerra é próxima” é porque a história desse espaço ainda nos é próxima no tempo, mas, igualmente, porque ela está sempre por vir, dado o recomeço incessante das exclusões e das segregações.

Portanto, não escapo à dimensão política. Ou melhor, é aí precisamente que inscrevo meu engajamento no mundo como cidadã, que reencontro um lugar na sociedade de hoje por meio da minha arte. Claro que os conteúdos históricos presentes nos meus filmes não poderiam assumir as formas que estes assumem para um historiador, assim como os conteúdos políticos, não poderiam ganhar a forma que lhes atribui um ideólogo ou politólogo. Exprimindo um ponto de vista, não estou submetida a suas deontologias ou, antes, a minha não obedece senão às regras do cinema. É esse ponto de vista que determina a forma do filme.

Em Le retour au pays de l’enfance, o entrecho político se liga, a princípio, à escolha dos meus protagonistas e ao dispositivo construído: as mulheres a que dou fala em lugares que lhes concernem intimamente. Eu elaboro um enquadramento formal que lhes oferece o estatuto de reveladoras da história, ainda que elas não sejam nem suas heroínas nem suas passionarias, mas pessoas que viveram uma vida atravessada pelos esgarçamentos comuns a toda uma geração. Ora, é justamente através de suas narrativas individuais – entre biografia e micro-história – e graças ao olhar subjetivo que elas trazem sobre aos lugares aos quais elas retornaram em função do filme, que eu reconto ao espectador – assim confrontado com esses diferentes terrenos do sensível – o que era a Normandia no momento da ocupação alemã, [a cidade de] Stolp [na Polônia] na época da Segunda Guerra, ou ainda Sakiet Sidi Youssef, e depois Aurès [na Argélia], durante a Guerra da Argélia. Em suma, ao reconduzir essas mulheres ao centro de um espaço físico e mental, meu filme convoca num mesmo movimento a história, a política e o território.

Em Et tu es dehors, a conjunção entre política e história se faz na relação que estabeleço entre um filme (M, de Fritz Lang), o pensamento de um filósofo (Michel Foucault, a respeito do biopoder), e momentos significativos do século XX, quando se cristalizou nossa relação com o Outro: a eliminaçãoo dos doentes e deficientes mentais sob o III. Reich, a evolução da psiquiatria na França depois de 1970, e, por fim, o tema dos estrangeiros como indesejáveis. Isso em diferentes territórios, que compõem a substância visual e sensível do meu filme: um espaço memorial e o território em torno (Hartheim na Áustria e o rio Danúbio), um monumento invisível (na Potsdamerplatz em Berlim), numerosos hospitais psiquiátricos do norte da França e, por fim, um abrigo para imigrantes solicitantes de asilo.

Et tu es dehors explora alguns pressupostos de Foucault sobre o nascimento do biopoder, o poder psiquiátrico e a loucura. Colocando em cena um narrador que, no hotel em Dunkerque ao qual ele retorna em busca de seu passado, não para de ser submergido por planos inteiros de história, o filme convida o espectador a se interrogar sobre o lugar da memória no presente. Ao fazê-lo, ele nos conduz, através de fotografias e extratos de filmes com estatuto de arquivo,  a Hartheim, um lugar onde foi aplicada a política eugenista do III. Reich. Tudo concorre, assim, para implicar o espectador em uma história que designa a anormalidade como um defeito essencial, e o Outro, como aquele que deve ser eliminado. Quanto ao imigrante, ele é uma vez mais aquele a quem se aplica uma política de mais e mais restritiva: como o “louco”, ele se tornou o contraponto [cf. termo melhor] da nossa sociedade.

Assim, as questões postas em cena por esse filme são múltiplas. Ao voltar ao momento europeu em que a biologia e a política entram em simbiose, meu filme – apoiado sobre o de Fritz Lang como sua base arqueológica – procura dar corpo a essa função assassina do Estado que, ao distinguir o anormal do normal, legitima a eliminação do que não corresponde à norma.


Negativo

Ao discutir a invisibilidade dos monumentos e como a transformação da memória histórica e a sacralização de uma história ossificada podem ser revertidas não só numa “obsessão comemorativa” mas, efetivamente, no esquecimento de uma dada experiência, você tocou em muitos temas sensíveis do debate sobre Brasília. Já denominada “museu da modernidade” (Adrián Gorelik), dela também já se disse que ela personifica a intuição de Lévi-Strauss sobre as cidades do novo mundo, que Caetano Veloso traduziu do seguinte modo: “aqui tudo parece ainda em construção mas já é ruína”. Por essa razão gostaríamos que você voltasse a duas reflexões que você fez ao falar do filme La guerre est proche : a ideia de que se pode erguer monumentos para não dar conta da complexidade memorial dos lugares e a de que o relato pode constituir, em contraposição a isso, uma espécie de monumento virtual que dá testemunho concreto dessa complexidade.


Claire

É curioso como nossas comemorações atuais se encontram apartadas de qualquer implicação com o presente, ainda que a atualidade que coabita com essa inflação de memória não seja nunca esclarecida pelo passado. A “obsessão comemorativa” e a valorização, ou mesmo sacralização dos “lugares de memória”, engendram uma verdadeira “topolatria”, uma memória “coletiva” fixada em vitrines de museus, memoriais e monumentos.

Ao interrogar o sentido mais fundo dessa inflação, artistas contemporâneos como Jochen Gerz criaram proposições que põem em crise essa ossificação da memória pelo monumento que é uma marca das nossas sociedades hoje. De minha parte, foi em 2004, graças à encomenda de uma obra para um espaço público, que comecei a me questionar mais concretamente sobre a relação entre monumento, memória e esquecimento. Tratava-se de realizar uma instalação, no interior de uma construção em madeira que evocava um posto de vigia, concebida pelo Atelier van Lieshout sobre a colina olímpica de Munique – colina cujo relevo nasceu dos escombros da cidade quase inteiramente destruída em 1945 e despejado na sua periferia pelos deportados do campo vizinho de Dachau. Realizada em colaboração com a escritora e diretora Eva Diamanstein, esse projeto buscava abrir uma fenda na memória “fixada” desse espaço, criando assim uma relação mais direta com o público. Como a disposição dessa colina remete tanto aos Jogos Olímpicos de 1972 quanto ao período da Segunda Guerra, procuramos um tema que ecoasse a ideologia olímpica, mesmo que pela inversão, e ao mesmo tempo fosse capaz de questionar o lugar, ele próprio. Descobrimos então que um dos hospitais psiquiátricos da periferia próxima, Eglfing-Haar, praticava ativamente o assassinato de deficientes mentais no quadro do programa nazista T4. Nossa reflexão girava em torno dessa questão da eugenia e de seu corolário assassino, a eutanásia – tema tabu na atual sociedade alemã e europeia. Pesquisando o tema nos Arquivos de Ansbach, que conservam os documentos judiciais, bem como os processos dos carrascos, descobrimos um corpus esquecido há mais de 50 anos: os dossiês médicos, único rastro de uma centena de crianças que foram enviadas em 1941 de toda a Baviera para serem assassinadas em Eglfing-Haar.

Confrontado com a exumação dessas curtas vidas esquecidas, nosso trabalho procura erguer-lhes, então, um monumento efêmero, recorrendo a uma forma de representação “por analogia” a fim de restituir um sentido contemporâneo para o assassinato dessas crianças. Mas como atualizar o arquivo sem desnaturar sua potência memorial, referente a uma história particular?

No centro da instalação, blocos, dispostos ao longo de estantes de madeira, trazem os nomes das crianças, assim como seus lugares e datas de nascimento e morte, e no lugar dos recipientes médicos que continham os cérebros das crianças mortas, colocamos potes de mel vazios, que tanto evocavam seu desaparecimento quanto lembravam ao visitante as “pesquisas” dos médicos nazistas efetuadas depois de seu assassinato.

Nesse arquivo de Ansbach, 4 fotografias antropométricas de uma criança (face, costas, perfil direito, perfil esquerdo) saltaram-nos aos olhos e, por isso, decidi atualizar esse rastro como uma expressão contemporânea da história, coletando sapatos de crianças em diferentes bairros de Munique, que fotografei seguindo os mesmos ângulos antropométricos. Esse conjunto, que parte de um deslocamento metonímico e captura, sem esgotá-las, as noções de ausência e desaparecimento, visa trazer o arquivo para perto do visitante contemporâneo, recolocando em circulação o que está em jogo no fim das contas: as palavras trocadas entre o poder e essas existências, as mais inessenciais – único monumento que jamais lhes foi dedicado, e que, reportando aos arquivos, permitiu que elas chegassem até nós.

Esse monumento frágil ganhou, ao longo de sua duração, essa circulação memorial que permitia aos visitantes reagir a um tema cruamente presente na cena pública. Estando todas as semanas no local – por ser responsável por acionar a trilha sonora difundida na construção, consertar os elementos expostos às intempéries e às degradações voluntárias – eu tinha de responder às questões dos visitantes, enfrentar suas reações por vezes violentas diante das “analogias” ou do simples surgimento de um passado “reprimido”.

Passado o tempo da instalação e desmontada a arquitetura de van Lieshout, o lugar voltou à sua indiferença inicial, entregue aos passeantes e aos esportistas, ao passo que um livro e um filme documentam o trabalho realizado, incluindo a degradação das fotografias expostas ao vento e à chuva.

La guerre est proche se depara com outra problemática. O lugar estava fadado a desaparecer, em parte pelo fato mesmo de haver uma vontade política de transformá-lo em “lugar de memória”. Ora, a escamoteação dos rastros reais em benefício da reconstituição e da organização consensual da memória é o próprio paradoxo desses museus-memoriais.

Por conta de suas qualidades próprias (captação/restituição, duração, narração) e da fragilidade de seu suporte, o filme pode oferecer, em contraposição a isso, uma outra forma de trabalho ativo com a memória: não criando in situ um novo espaço, que transforme forçosamente nossa relação com os rastros subsistentes (quando não os faz simplesmente desaparecer), mas dando forma, pela montagem, a uma narrativa que pode oferecer-se não apenas como monumento virtual e homenagem ao lugar mas, ao mesmo tempo, como o rastro concreto e documentado daquilo que foi esse lugar naquele momento da história, o aqui e agora da filmagem.

La guerre est proche é, nesse sentido, concretamente o documento do que foi o campo de Rivesaltes em 2010 e daquilo que ele não é mais em 2013. É esse também o caso de um conjunto de filmes que se confrontam aos campos da morte. Em La Passagère (Pasazerka, 1961-1963), o cineasta Andrzej Munk, que encena uma história ficcional entre uma vítima e seu carrasco em Auschwitz, filma o lugar uma quinzena de anos mais tarde. E essa espessura temporal impressiona. Em Auschwitz também os prédios envelheceram e, no exterior, a exuberância da natureza remete às palavras de Jean Cayrol em Nuit et brouillard [Noite e neblina, de Alain Resnais]: “a grama renasceu”.

Mas com que se parece hoje o aqui e agora de Auschwitz? Museu estatal, barracões transformados em lojas, painéis que convidam os visitantes a não jogarem lixo no chão...: “o que dizer quando Auschwitz deve ser esquecido no lugar mesmo em que está a fim de se constituir como um lugar fictício destinado a fazer lembrar Auschwitz?”

No que diz respeito a Brasília, trata-se de uma outra relação com a ruína e com a história, pois a construção mesma dessa cidade “do futuro” implicaria seu “tornar-se ruína”. Não conheço os detalhes dos debates em torno da cidade desejada por Kubitschek, mas, a se crer em Luiz Martins, Mário Pedrosa e, mais recentemente, Luiz Recamán, seria possível apontar uma dimensão “alegórica” na arquitetura local, ligada aos valores de um imaginário pós-colonial, que podemos situar, por exemplo, nos palácios presidenciais feitos à imagem das casas-grandes ou nessas “colunas inúteis” (nem estruturantes nem funcionais) das caixas envidraçadas dos palácios ministeriais, que têm decerto um papel emblemático. Você lembra ainda, por meio da canção de Caetano Veloso, como a visão dessa capital futurista inaugurada em 1960 transformou-se a partir de 1964, quando a cidade se tornou o centro político e administrativo do regime militar; como se esse monumento da arquitetura modernista mais avançada, ao exprimir uma utopia do progresso, revelasse a natureza oculta de sua arquitetura ao tornar-se um símbolo da ditadura.

Evidentemente, a fórmula de uma cidade em construção mas já em ruína não deixa para mim de soar como um eco da teoria antimodernista de Albert Speer de edificar cidades que encarnariam o III Reich como potenciais “belas ruínas” do futuro.

A ruína da utopia por meio da responsabilidade da arquitetura me leva, além disso, a uma das temáticas desenvolvidas em La guerre est proche e em meu último trabalho, um livro-filme dedicado ao campo de Drancy, símbolo da deportação dos judeus na França. Se foram arquitetos “que desenharam tranquilamente esses portais destinados a serem ultrapassados uma única vez”, o que tem, de fato, prioridade no universo concentracionário: o projeto repressivo ou a arquitetura que o permite?

O personagem (fictício) do arquiteto em La guerre est proche responde, quanto a ele, que “o problema da internação, da alienação de homens por outros homens, não é um problema de arquitetura nem de urbanismo. A partir do momento em que está tomada a decisão de hospedar ali populações que não estimamos, é com uma grande coerência de pensamento que os edifícios que os acolhem sofram, eles próprios, um destino trágico”.

Em Drancy, o projeto do Conjunto Habitacional de La Muette inscreve-se originalmente em um programa modernista de cidades-jardins operárias no entorno de Paris: é uma arquitetura pensada como um projeto aberto, cujo plano de conjunto compreende em particular um grande parque posto à disposição dos habitantes e das moradias com vastas baias e portas corrediças, tudo realizado a partir da montagem de elementos seriais, segundo um procedimento industrial de pré-fabricação. Com a crise, no entanto, o desemprego se instala, o canteiro pára, e um certo número de habitações permanece vazio, outras inacabadas. Instalam-se guarda-móveis nesses “primeiros arranha-céus da França”, que se elevam acima de uma construção mais baixa na forma de ferradura, originalmente destinada aos comércios e a uma escola. Com a aproximação da Segunda Guerra Mundial, essa parte do conjunto habitacional virou prisão para os “suspeitos” (comunistas, refugiados antifascistas), e em seguida, com a derrota, o centro de triagem dos judeus, que de lá são deportados, primeiro da zona ocupada e depois de todo o território (notadamente depois de Rivesaltes), para a Alemanha e Polônia.

Podemos nos perguntar como um projeto arquitetônico dessa natureza tornou-se um lugar de internação e a antecâmara francesa dos campos de extermínio. Como pode se transformar no seu contrário um lugar pensado e desejado como aberto e poroso? Por uma ironia da história, o projeto de la Muette foi, desde sua concepção, particularmente condenado pelos adversários do movimento moderno como o fruto da “imaginação super-excitada” de seus dois arquitetos – nas palavras do polígrafo Louis Thomas durante a ocupação alemã – sendo regularmente condenado, desde então, como protótipo dos grandes conjuntos da periferia parisiense erigidos no período de crescimento econômico dos anos 1950-1960.

Meu trabalho procede de uma montagem. Por um lado, trata-se, pela fotografia, de explorar o lugar atual do conjunto habitacional que foi um campo, registrando uma arquitetura modernista atualmente envelhecida e degradada, e, por outro lado, de compreender, graças a imagens de arquivo, como esse espaço pôde concretamente tornar-se um campo e sobretudo funcionar como tal. Ao longo dessa pesquisa, descobri que o vocabulário do aprisionamento é múltiplo: o arsenal opressivo que conduz a essa transformação consiste em arames farpados, postos de vigia, no man’s land, refletores, presença policial, rotas de ronda. É portanto ao preço desses “acréscimos” que a arquitetura pode efetivamente funcionar como um campo que alguns internos puderam qualificar como “pior que Dachau”. Meu trabalho de montagem, que dá a ver e a entender esse funcionamento da arquitetura ontem e hoje, redistribui as cartas do tempo. Desvelando o passado no presente, torna a história palpável no seio da atualidade de um lugar hoje habitado pelas populações desfavorecidas do norte da Ilê de France. Se a construção recente (2012) de um museu-memorial em Drancy, em frente do conjunto habitacional e devidamente separado dele, tenderia a reconduzir à separação entre história e presente, eu busco, ao contrário, abolir uma tal dicotomia, cada página de meu livro concorrendo para essa coabitação visível e perturbadora.


Negativo

Nossa última questão responde, em verdade, a uma demanda de Jean-Claude Bernadet, que viu seus filmes no forum.doc e gostaria que você falasse sobre a decisão de não dar ao espectador informações precisas sobre os lugares e pessoas que vemos nos teus filmes: não sabemos muitas vezes sua localização, seus nomes e mesmo, não raro, porque um endereço ou outro aparece na tela tão intensivamente. Para Jean-Claude, essa falta de informação aproxima teus filmes de uma fração significativa da produção contemporânea que se distingue por uma linguagem elíptica e alusiva e que, ao menos no Brasil, não chega a intervir no debate público, muitas vezes, a despeito de suas intenções. (Ele te escreveu, a propósito, sobre a repercussão de Kashima Paradise no fórum de Belo Horizonte)


Claire

Os filmes que faço não estão ligados a atividades militantes, ainda que alguns deles exprimam abertamente posições políticas. De fato, os partidos ou organizações políticas tendem a preferir objetos cinematográficos de uso pontual e imediato, articulados em torno de uma atualidade compreensível e instantaneamente perceptível. O que me parece inteiramente aceitável no quadro de uma mobilização, onde eventos são filmados e mostrados, seja para informar ou incitar outros a se posicionar. Mas essa temporalidade curta – que o cinema militante pôde praticar e pratica (Joris Ivens na época da Guerra do Vietnã e Yann Le Masson com as lutas no Japão); que os filmes-panfletos de Maio de 68 (filmados por Chris Marker, Godard etc.) tentaram praticar, supõe uma situação que não tem nada a ver com a minha. Exemplo disso é um curta-metragem recente – Jeune, Révolution! [Jovem, revolução!] – em que abordo a “revolução tunisiana”. Como não atuo numa organização política da Tunísia e como meu filme não vai ser mostrado naquele país – a não ser por meio de desvios e mediações que não podem, de modo algum, lhe conferir esse lugar e essa função –, ele se encontra por definição deslocado, tanto geográfica quanto temporalmente. É preciso, então, que se parta desse deslocamento – que, no meu caso, não é imposto, como pode ter acontecido com Ici et ailleurs (1974) de Godard e Miéville, mas escolhido. Esses cineastas se viram frente a uma encomenda da OLP (Vers la révolution, 1970) e constataram a certa altura que não podiam atendê-la. Algo que, todavia, outros buscaram fazer nesse mesmo contexto. Francis Reusser com Biladi, une révolution (1970), van der Keuken com De Palestijnen (1975) – dois filmes solicitados pela mesma OLP e realizados no “tempo adequado” para o uso que a organização deles desejava fazer. Ainda assim, tal uso visava menos a militância, no sentido de uma “mobilização” dos atores e do povo em luta evocado há pouco, do que a popularização dessa luta na Europa e no Exterior, tendo em vista um outro tipo de mobilização: a da solidariedade internacional. E van Keuken, ao evocar a questão do extermínio dos judeus da Europa pela Alemanha nazista num filme sobre a Palestina, teve ainda que “brigar” para exprimir sua própria posição. Há portanto, nesses exemplos, pelo menos três tipos diferentes de cinema político: a mobilização imediata ou de curto prazo; a popularização de uma causa no Exterior, e por fim, a reflexão sobre a relação que um cineasta pode ter realizando um filme sobre um tema político – reflexão que supostamente leva em conta a dialética entre a sua posição (poderíamos dizer: no seio das relações de produção) e o evento que constitui a matéria e o tema de seu filme. Na verdade, todas as três modalidades deveriam implicar esse questionamento “em ato” e, independente de sua perspectiva, um bom número de filmes carrega os estigmas disso, uma vez que o “deslocamento” é quase que constitutivo da realização de um filme – a menos que se queira apelar para o “direto” com que sonharam tanto Vertov quanto Godard (sem jamais conseguir realiza-lo) sob o nome de “televisão”. Veja-se, a propósito, os filmes militantes da Film and Photo League, da Nykino ou da Frontier Films, bem como de outros movimentos norte-americanos dos anos da Crise e da Depressão: os de Leo Hurwitz, Pare Lorentz, Paul Strand, Samuel Brody etc. Há neles sempre uma distância, às vezes de vários anos, que adia o momento da difusão – como ocorreu com Native Land, Strange Victory e Redes. No mesmo sentido, podem ser vistos os filmes de apoio aos Republicanos espanhóis feitos por Jori Ivens, Cartier-Bresson, Herbert Kline etc.

É preciso, assim, partir da realidade mesma desse deslocamento, ao invés de fantasiar sobre uma imediatez mais ou menos inatingível ou raramente atingível.

É uma outra forma de relação com o real a que visam filmes: uma relação que, certamente, pode entrar em contradição com as expectativas de uma luta política que busca o ganho imediato, mas que não é, no caso, uma contradição que me concerna. Meus filmes não são encomendas. Meus temas nascem das minhas aspirações ou da minha cólera. Como um intelectual, cujas reflexões não dependem das instruções de um partido, o cineasta faz um trabalho de reflexão que parte das qualidades próprias de sua mídia: do estabelecimento de relações entre imagens e sons. E ao fazê-lo, convoca o sensível para além de suas aparências imediatas.

O que me autoriza, porém, a considerar as encomendas que faço a mim mesma como pertinentes para o pensamento e a ação coletivas no mundo em que vivo?

O que me permite falar a partir do lugar onde estou vem do fato de que, não sendo uma abstração nem vivendo em um universo abstrato, aquilo de que falo é também aquilo que vivo. No mundo comum, posso eu mesma compreender o sentido que assumem palavras como estrangeiro, discriminação, exclusão, marginal etc., pois tanto na sociedade (onde não ocupo um lugar institucional) quanto no campo cinematográfico e artístico, conheço por experiência própria fenômenos idênticos: fenômenos que são, de fato, da sociedade como um todo. E é também por isso que posso reconhecer no meu trabalho, que se encontra no cruzamento de forças que atravessam minha experiência singular de artista, de mulher, de cidadã etc, uma certa pertinência desse vivido. Em suma, é o fato de ser eu própria um ser social e um corpo engajado nos milhares de jogos cotidianos que me permite dar forma a essa ou aquela problemática. Minha expatriação na Alemanha, por exemplo, me torna particularmente sensível à questão da migração – essa grande questão do século XXI – na medida em que experimento concretamente no meu dia-a-dia o estatuto de ser estrangeira nesse país. Se eu fosse uma assalariada da televisão, certamente seria outra minha relação com o mundo e, encontraria em mim outro eco a percepção de suas contradições sociais mais agudas.

Sua questão, no entanto, me põe ainda um outro problema: o de uma participação efetiva no debate social e político capaz de nele atuar de forma durável. Será que ainda é pertinente o modelo da “invenção estilística como condição de uma arte política”?

Se, por um lado, é certo que o cinema acompanhou as revoluções e que as vanguardas cinematográficas não podem ser separadas de uma aspiração de mudar a sociedade em um contexto de transformações sócio-econômicas reais, também é certo que ele nunca pretendeu por si só iniciá-las diretamente. Pelo contrário: a própria história do cinema ensina que sua força política se exprime plenamente quando um pensamento formal é exercido e amadurecido e quando o filme se torna a proposição de uma experiência complexa (Vertov).

Nos filmes de [Jean-Marie] Straub, por exemplo, é para mim bastante perceptível essa conjunção de inventividade das soluções formais e alcance político. Em Geschichtsunterricht [Lição de história, 1972], em particular, a adequação de uma forma à força do discurso político me parece ter sido levada à enésima potência. Pondo em cena fragmentos de um texto de Brecht sobre o papel do dinheiro como instrumento de tomada de poder (Die Geschäfte des Herrn Julius Caesar/Os negócios do Sr. Julio César, 1975), Straub filma seus atores sob ângulos inesperados com rigor extremado, transformando o fora de campo no centro formal de todo o filme e como que num equivalente das relações políticas entre os personagens – suas negociações, enganos, etc.

A força do cinema reside, para mim, na possibilidade de conduzir sensivel e intelectualmente o espectador de modo a torna-lo, por sua vez, ativo. Em meus filmes, por exemplo, busco suscitar o questionamento, seja por um dado movimento de câmara, seja pela insistência na duração de um plano específico, seja pela maneira de apresentar um assunto. Se de fato as respostas não estão sempre dadas, pois a natural polissemia das imagens em movimento não poderia reduzi-las a uma única solução ou comentário, cada gesto formal responde a uma significação particular, e dar uma forma ao filme é para mim oferecê-lo ao espectador como um objeto de reflexão sensível.

Em Le retour au pays de l’enfance, por exemplo, a continuidade da banda sonora interrompe-se bruscamente num dado momento, só retomando progressivamente alguns instantes mais tarde. Esse buraco auditivo, que surpreende e por vezes inquieta o espectador, levado a interrogar-se sobre o significado dessa ausência, é para mim um equivalente da casamata metálica, aquele elmo monstruoso vestígio da Primeira Guerra Mundial, que a câmara como que descreve naquele momento. A violência provocada pela suspensão do som corresponde à violência visual do objeto descrito.

Uma lógica idêntica, me leva a inserir planos negros em alguns momentos do filme. Eles estão ali para exprimir o raccord impossível entre as temporalidades, os lugares e as narrativas disponíveis na montagem. Eles indicam ao espectador que algo acontece: um rompimento entre aquilo que se diz e aquilo em que de fato se deve crer ao ouvir o que é dito; entre dois espaços antitéticos ou ainda um rompimento no interior das biografias. Marie-Hélène constrangida, perguntando-se sobre a adesão de seus pais a Pétain, Sieglinde mentindo quando evoca seu esquecimento da “Noite de cristal” ou ainda Narriman fugindo de seu país após a evolução política da Argélia e vivendo seu exílio, a partir de então, do outro lado do Mediterrâneo.

Ainda nesse filme, um plano se detém longamente sobre a silhueta de uma montanha dos Aurès [no leste da Argélia], enquanto o som de um motor de avião, ecoado pela montanha, invade paulatinamente o espaço de forma cada vez mais violenta. Estendendo a duração dessa imagem a ponto de tatuá-la literalmente na retina do espectador, busca-se pela emoção visual e auditiva sugerir nessa zona de combate tão duramente marcada pela guerra uma história que sem ser vinculada por nenhuma narrativa, ou documentada por qualquer arquivo, é contada pela violência física sofrida pela montanha desfigurada e erodida: a história dos bombardeios de napalm.

Em Brise la mer [Irrompe o mar] a radicalidade da fala da narradora, que se interroga abertamente sobre as razões da guerra da Argélia, tem como equivalente visual o enquadramento e a montagem aguda e cortantes, seja no tocante à duração, ritmo, ângulo ou música.

Em Par l’eau et par le feu [Pela água e pelo fogo], ao voltar a um abrigo de imigrantes do Mali em um bairro de Paris, cinco anos após um incêndio criminoso que matara cerca de 40 pessoas, tratava-se de encontrar, pelo movimento de câmara, um equivalente visual dos corpos em queda que, no momento do incêndio, se lançavam em pânico no vazio.

Em todos esses casos, temos exemplos de deslocamentos no tempo, e por vezes no espaço, que separam um evento ou situação e seu trabalho pelo filme; a mimese de um evento e sua representação. O que leva à questão do impacto de uma obra sobre o público. Como avalia-lo? Seria a quantidade de informações a serem extraídas de um filme – sua precisão (data, localização, identidade) – determinante para sua “boa recepção” por parte do espectador?

No Diário de trabalho que manteve durante a guerra, Brecht anota, em 16 de setembro de 1940: “seria extremamente difícil descrever meu estado de espírito quando, depois de ter acompanhado a batalha da inglaterra pelo rádio e pela medíocre imprensa fino-sueca, escrevi puntila. esse fenômeno moral explica igualmente que tais guerras possam existir e que o trabalho literário possa continuar. puntila não me diz respeito em quase nada, a guerra em tudo; posso escrever quase tudo sobre puntila, nada sobre a guerra. não penso só no “direito” de escrever, mas na “capacidade” de fato de fazê-lo. é interessante ver como a literatura enquanto práxis está relegada a uma tal distância frente ao centro dos eventos de que tudo depende”.

Me parece que essa citação, que esclarece o funcionamento subjetivo próprio ao escritor confrontado com os eventos trágicos que o cercam, enuncia algo sobre a posição do artista ligado a sua questão: o modo como os eventos ressoam em nós e os desvios intelectuais de que por vezes necessitamos para falar de outro modo e de outro lugar das características de nosso tempo.

Na medida em que nos permitem outras formas de refletir sobre a noção de atualidade, me parecem particularmente fecundos, nesse sentido, tanto o deslocamento sistemático de um Brecht, que colhe na história grega e romana elementos para compreender sua época, quanto o de um Pasolini, que eleva a inatualidade ao posto de princípio estético .

Na realidade, esse debate quanto ao grau de identificação dos fatos, personagens, lugares e outros elementos apresentados nos filmes é quase tão velho quanto o próprio cinema. O factualista Victor Chklovski contrapunha-se nesse ponto a Dziga Vertov, criticando-o por não dizer o suficiente. Ao que Vertov respondia: “É falsa a afirmação segundo a qual um fato vivo fixado pela câmara perde o direito de ser chamado de fato caso seu nome, lugar e número não sejam levados à película. Um cão que corre na rua é um fato visível ainda que não o tomemos para ler o que está escrito em sua coleira. Um esquimó na tela continua sendo um esquimó, mesmo que não esteja escrito que é “Nanouk”. É inteiramente idiota esforçar-se (como regra) para que cada imagem responda a este questionário completo: onde, quando, como, por que, data de nascimento, situação de família etc.

É justamente sobre isso que busquei refletir em Jeune, Révolution!, ao me voltar para um movimento político de grande amplitude: o da revolução tunisiana. Como falar sobre esse processo? E por que falar, num mundo saturado de informações? Pareceu-me que não se tratava de descrever uma atualidade que outros, melhor informados e mais implicados do que eu, poderiam reportar; nem de querer relatar, no calor dos acontecimentos, uma fase do próprio evento – as manifestações, lutas populares, esperanças, angústias, problemas. Era preciso considerar de outra forma o que estava acontecendo.

De fato, meu filme fala pouco sobre a Tunísia. Apresenta, ao longe, alguns fragmentos de Túnis, um jovem casal nos altos [da província] de Sidi Bou-Saïd, uma biblioteca deserta e vazia, um parque abandonado. O que se enuncia carrega mais a marca das incertezas de meu interlocutor a respeito do que está para acontecer do que informações sobre fatos precisos. No entanto, acho que, politicamente falando, Jeune, Révolution! é um filme necessário. Para falar da Tunísia, operei nesse filme um deslocamento. A citação da abertura não vem de um ator da revolução tunisiana, mas de um revolucionário francês de 1792. Robespierre, o homem hoje mais odiado e mais marginalizado – uma referência negativa, a do Terror revolucionário – mas cuja reflexão sobre a soberania popular é a chave-de-abóbada de todo o filme, na medida em que a revolução é a questão crucial da Tunísia hoje, por trás do caráter aleatório das lutas cotidianas que terminam por diluir seus principais pressupostos.

É possível que Jeune, Révolution! suscite espanto e mesmo frustração: ele nada conta, não relata qualquer fato marcante ou singular acontecido recentemente na Tunísia, não traz nada capaz de suscitar adesão ou simpatia do espectador. Tampouco mostra “eventos” concretos, manifestações, confrontos ou discursos de lideranças. No entanto, Jeune, Révolution! fala do povo justamente onde ele se arrisca a ver confiscado aquilo porque luta. Por esse meio, busca produzir uma leitura da história que desloca nossos quadros perceptivos acerca desse evento. E meu trabalho de cineasta se liga justamente a esses deslocamentos: não à informação, mas a um outro termo, à reflexão. E para essa reflexão, uma forma.


copyright claire angelini e negativo, 2012                                                                     

                                       

                                                                                                                                                     
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